SAULO PEREIRA DE MELLO, restaurador e pesquisador de filmes Foto: Arquivo Pessoal
Walter Salles, especial para O GLOBO
03/05/2020 – 04:30
A notícia incendiou os corredores da Faculdade Nacional de Filosofia. “Limite”, de Mário Peixoto, seria projetado no auditório da faculdade. O filme havia sumido de circulação desde sua exibição inaugural no Chaplin Club, em 1931. Entre os jovens estudantes que o descobriram naquele dia em 1953, estava Saulo Pereira de Mello. Tinha 21 anos, a mesma idade de Mário ao dirigir o filme. Um mar cintilando à contraluz tomou a tela, fundindo-se à imagem de uma mulher olhando o espectador, algemas nos punhos. Ao longo da projeção, Saulo sentiu um arrebatamento que até então desconhecia. Haveria um antes e depois daquela experiência em sua vida, e na história do filme.
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Tudo em “Limite” o encantou. Em suas palavras: “o desejo utópico do homem finito em apreender o mundo infinito”; “a organização da história de três náufragos, com voltas periódicas ao barco em que buscam sobreviver”; “o fluxo de imagens luminosas, determinado por uma rítmica ousada e complexa”; “‘Limite’ não reproduz o visível, torna visível”.
Plínio Sussekind Rocha, o professor de física que havia organizado a sessão, percebeu o estupor de Saulo frente a “Limite”, e lhe perguntou à queima-roupa: “O filme está se perdendo. Você não vai fazer nada? Vai deixar que um filme como esse desapareça?” A resposta a essas perguntas preencheria toda a vida de Saulo Pereira de Mello.
“Limite” foi filmado em nitrato, um negativo inflamável que pode entrar em autocombustão. As poucas cópias que restavam estavam em frangalhos. O jovem resolveu restaurar o filme, reproduzindo-o fotograma por fotograma, prendendo sua Pentax numa traquitana montada em casa. Chegava do trabalho e atravessava a madrugada na restauração minuciosa da película. Certa vez, quando voltava de São Paulo com parte do negativo, o avião enfrentou uma tempestade tenebrosa. No auge da turbulência, só conseguia pensar numa coisa: “Se esse avião cair, é o fim de ‘Limite’”.
O primeiro restauro, que Saulo completou no início dos anos 70 e cuja autoria fez questão de dividir com Plínio Sussekind, é um dos feitos mais prodigiosos da história do cinema brasileiro. O filme de Mário Peixoto pôde finalmente ser visto por gerações que até então só tinham ouvido falar dele. Muitos de nós por meio de Vinicius de Moraes, admirador de primeira hora do filme. Na árvore genealógica do cinema, escreveu Vinicius, “Limite” era como um passarinho que pousava em um dos seus galhos e voltava a alçar voo. Um filme inclassificável, essencialmente livre.
A experiência do restauro permitiu a Saulo criar uma ferramenta única: o “Mapa de ‘Limite’”, um livro que revisitava a obra fotograma por fotograma. Editado pela Funarte em 1976 e hoje esgotado, o “Mapa” é uma preciosidade. “Para Saulo, era essencial viver o filme dentro de si em todas suas formas. Ver, ver, rever até encontrar algo raro e sublime”, diz Filiippi Fernandes Silva, seu assistente no Arquivo Mário Peixoto por mais de 12 anos.
Os anos de reconstituição de “Limite” também marcaram a imersão de Saulo na fase que ele considerava a mais criativa da história do cinema, a do final do cinema mudo. Venerava “A paixão de Joana d’Arc” de Dreyer, “A mãe” de Pudovkin, “O homem de Aran” de Flaherty, “Luzes da cidade” de Chaplin, “Outubro” de Eisenstein. Os irmãos de “Limite”, segundo Saulo. Ele escreveu inúmeros ensaios sobre esses filmes.
O cinema era uma matéria viva, que merecia ser compartilhada. Ao longo dos 22 anos em que Saulo esteve à frente do Arquivo Mário Peixoto, sempre ao lado de Ayla, companheira de vida, cerca de cem teses de mestrado ou doutorado foram escritas a partir da fortuna crítica que ele amealhou. Editou toda a obra poética de Mário Peixoto e o seu romance “O inútil de cada um”, com a ajuda preciosa de Roberta Gnatalli. Fazia questão de tornar disponíveis todos os livros que falassem de “Limite” — bem ou mal, não lhe importava. Roberta lembra como Saulo “gostava de distribuir seus achados, suas ideias e teorias, e fazia isso largamente”.
Promovia sessões dos filmes que amava para quem se interessasse, de estudantes a roteiristas. As discussões entravam noite adentro. Lembro de dois momentos particulares. Em “A paixão de Joana d’Arc”, na cena em que a protagonista ouve sua condenação à morte, Saulo prendia o fôlego. A câmera em close-up se atarda no rosto da protagonista, e uma mosca pousa nela. A atriz não esboça reação. A incorporação do acidente (o inseto) e o estado de ausência da personagem revelam a magnitude do drama interior, transcendendo a esfera do real, nos apontava Saulo.
A projeção de “A linha geral” de Eisenstein lhe permitiu mostrar que mesmo em um filme imperfeito era possível apontar algumas sequências extraordinárias. A revolta dos camponeses contra as autoridades religiosas que haviam acenado com uma falsa promessa de chuva era uma delas. A escalada da violência na insurreição contra os embusteiros é uma aula de direção e de montagem, que deixava os olhos de Saulo brilhando. Foi nessa noite que ele confessou: “Não gosto de cinema. Gosto de certos filmes.”
No início dos anos 2000, o primeiro restauro de “Limite” começou a se deteriorar. Alguns rolos já estavam avinagrados. Tinha início a segunda luta para salvar “Limite”. Por sorte, Saulo contou com a cumplicidade e a rara competência de Patricia de Filippi, então diretora técnica de restauro da Cinemateca Brasileira. “Começamos juntos a montar o quebra-cabeça do filme: diferentes materiais e montagens, uso de películas com bases diversas, verdades e mentiras, uma escavação sem tamanho.”
Foram mais dez anos de trabalho, com o apoio da Film Foundation de Martin Scorsese e da Cinemateca de Bolonha, até reencontrar o mesmo contraste em nitrato, que só Saulo conhecia. Ele era, àquela altura, a memória viva do filme. Quando Saulo aprovou o restauro digital, no último dia de trabalho, Patricia lembra que “ele antecipava cada plano, dizendo o que seria importante notar no próximo — e no próximo e no próximo…. foi uma provação de duas horas. Não era em nitrato, mas o grão estava ali, as altas e baixas luzes e os meios tons também”.
E então houve a batalha dos créditos. “Saulo foi muito generoso em querer nossos nomes junto ao dele na cartela de créditos. Insistimos que apenas ele deveria ser creditado”, lembra Patricia. “Saulo respondeu com uma cartinha inspirada na famosa frase da peça ‘Henrique V’, de Shakespeare: ‘We few, we happy few, we band of brothers’… E assim foi. Nós poucos e contentes, bando de irmãos, vencendo o combate.”
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Haveria muito mais a dizer de Saulo. Do seu papel polinizador, influenciando jovens cineastas. Das suas conversas com Eduardo Coutinho, que dividia ideias com ele, entre dois cafés. Dos pequenos mimos com que brindava as amigas de trabalho. O mais popular era a goiabada caseira que ele fazia, “pecadillo” cuja receita era tão singular que acabou publicada nas páginas da revista “Piauí”.
Aos 80 e poucos anos, tinha múltiplos projetos. Montou uma “Cinemateca mínima”, com cenas de 14 filmes que julgava fundamentais. Terminou o mapa de “Terra”, de Dovzhenko. Planejava melhorar o “Mapa de ‘Limite’”, e preparar os mapas de “O homem de Aran” e “Luzes da cidade”. Seriam ainda mais essenciais, sem a descrição dos fotogramas. O Alzheimer e a Covid-19 não permitiram.
Neste momento em que somos todos um pouco náufragos como os personagens do filme de Mário Peixoto, e temos a noção de nossa extrema fragilidade em um país à deriva, a vida e obra de Saulo Pereira de Mello são um alento. Até o fim ele se manteve fiel a si mesmo. Guardou o rigor, a intransigência e a generosidade do rapaz de 21 anos que um dia viu “Limite” na tela imensa do cinema, e se apaixonou.
Walter Salles é cineasta.
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