Luiz Carlos Merten
N os anos 1980, ele era chamado de Sr. Cinema - Wim Wenders. Nenhum outro diretor, naquele momento, parecia tão habilitado a falar sobre relações líquidas e a importância, cada vez maior, que o telefone, o walkie-talkie, o gravador, todos esses aparelhos que substituem o contato direto, assumiam, quase como substitutos, na vida das pessoas. O contato era filtrado nos filmes de Wenders. É curioso que, hoje, em plena pandemia, a humanidade esteja voltando aos aparelhos para se comunicar - juntos à distância. Há uma cena breve, tão breve, que o espectador talvez nem se lembre dela em Paris, Texas.
Travis emerge meio morto do deserto, resgatado pelo irmão. Reassume seu lugar no mundo dos vivos, e, no início, o tema de Wenders é o reencontro dos irmãos. Não é um processo fácil. Travis tenta fugir repetidas vezes, voltar ao inferno. A cunhada faz a ponte, ele se reaproxima do filho e só então a busca da mulher se impõe. A eterna tragédia, já filmada por Jean-Luc Godard em O Desprezo, de 1964, 20 anos antes.
A Odisseia. A mulher moderna não é mais Penélope, mas isso porque o homem também não é mais Ulisses. Depois de muita procura, Harry Dean Stanton, como Travis, reencontra a mulher, Nastassja Kinski, numa peep-shop. Paris, Texas venceu, entre muitos outros prêmios, a Palma de Ouro de 1984. Wim Wenders tinha 39 anos, ainda não ingressara nos "enta".
Nesta sexta, ele completa 75 anos - nasceu em 14 de agosto de 1945. Na sequência de Paris, Texas, ainda fez grandes filmes - Tokyo-Ga, Asas do Desejo. Depois, seguiu uma trajetória errática. Deixou de ser o Sr. Cinema.
Mas no imaginário do cinéfilo permanecem os grandes momentos que ele criou. Nenhuma cena é mais convulsiva do que aquela, em Paris, Texas. Travis, num momento de confusão interior, encontra na rua o alienado que berra suas imprecações contra a cidade. Ele olha, aproxima-se e toca de leve esse homem, numa mistura meio confusa de apoio e compreensão. Travis compartilha a angústia interior que ele está vivendo.
Baseado em obra de Patricia Higsmith, famoso pela quantidade de atores diretores. Dia 13.
Tributo a Yasujiro Ozu, uma viagem à Tóquio contemporânea e aos fliperamas. Dia 20.
Sequência de Asas do Desejo. O anjo Cassiel salva a vida de uma mulher e torna-se mortal. Dia 27.
O processo criativo do estilista Yohji Yamamoto. 3/9.
Obra-prima de Wenders. Travis emerge do deserto para se unir à mulher e filho. 10/9.
Dois anjos conseguem ouvir os desejos das pessoas. 17/9.
Seis dias na vida de um aspirante a escritor. 24/9.
O jornalista e a garota que busca a avó num road movie. 1º/10.
A cena lembra, de forma furtiva, O Rei dos Reis, de Nicholas Ray, de 1960, quando Jeffrey Hunter, como Cristo, acalma o endemoniado. Não tem a ver, necessariamente, com cristianismo. Ray, nos anos 1950, transformara-se no grande poeta maldito de Hollywood, filmando rebeldes aparentemente sem causa. Independentemente de ser católico ou não, de ser cristão ou não, toda a trajetória de Ray no cinema de gênero o levava a encontrar no Cristo a paz interior para os tormentos que consumiam seus personagens. Wenders buscou essa mesma pacificação em Paris, Texas.
Para comemorar os 75 anos do autor, o Belas Artes a La Carte está lançando, no streaming, uma programação especial que começa nesta quinta, 13. Durante oito semanas, serão lançados, a cada quinta-feira, um filme importante que ele fez. A série começa com O Amigo Americano, uma adaptação de Patricia Highsmith, Ripley's Game. Bruno Ganz trabalha na restauração de quadros. Conhece Ripley/Dennis Hopper num leilão, num episódio que envolve uma falsificação. Ganz está morrendo e o outro o convence a participar de uma trama de assassinatos, para deixar a família com algum dinheiro. Nicholas Ray participa como ator, e logo em seguida, em Nick's Movie, Wenders filmaria a morte do próprio Ray. Na trilha aberta por O Amigo Americano, virão, nas quintas seguintes, Tokyo-Ga (dia 20), Tão Longe Tão Perto (27), Identidade de Nós Mesmos (3 de setembro), Paris, Texas (10), Asas do Desejo (17), Movimento em Falso (24) e Alice nas Cidades, já em outubro.
Wenders iniciou-se no curta. Provocou impacto com O Medo do Goleiro Diante do Pênalti, de 1971. A expulsão pelo árbitro leva o goleiro a matar uma jovem sem explicação. Começam as deambulações - Alice nas Cidades, Movimento em Falso, No Decurso do Tempo. Wenders define o seu estilo, propõe rupturas e a negação de princípios narrativos, vira arauto da pós-modernidade com imagens hiper-realistas que batem na tela como simulacros. Baudrillard - a realidade deixou de existir e as pessoas passaram a viver e dar mais importância às representações da realidade transformadas em verdades absolutas pela mídia.
A trajetória é ascendente até Paris Texas, cuja ideia foi sugerida por uma imagem nas Crônicas de Motel, de Sam Shepard. O homem que deixa a autoestrada e se enfurna no deserto. Tokyo-Ga é o tributo de Wenders ao mestre Yasujiro Ozu, que filmou, com minimalismo, as transformações da família japonesa após a 2.ª Grande Guerra. Asas do Desejo virou êxito planetário - o maior sucesso de Wenders. Uma história de anjos, sob o céu de Berlim.
Convertido em celebridade, Wenders corre o mundo fotografando, filmando e dando palestras. Foi um dos debatedores do projeto Fronteiras do Pensamento, pelo qual veio ao Brasil em 2019 falar do futuro que já havia chegado. Seu tema, por meio da errância de seus personagens, sempre foi a comunicação humana - a dificuldade que as pessoas têm para se comunicar.
Não é escusado pensar que, aos 75 anos, e em pleno isolamento social da pandemia, cada vez mais os temas tradicionais de Wenders adquiram uma nova dimensão. O deserto como metáfora, a busca pelo toque regenerador. É tempo de repensar Wenders à luz do novo normal que se desenha no horizonte.
Luiz Carlos Merten