Carlos Henrique Schroeder está isolado, mas a afirmação não é uma novidade para o escritor catarinense, vencedor, entre outros, do prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional. Embora esteja seguindo as recomendações da quarentena impostas pela pandemia, o autor do recente Aranhas (Record) já experimentava sensações parecidas ao isolamento mesmo antes da pandemia.
Ele explica não querer bancar o mártir: cercado de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro no presente, pressionado pelo passado integralista da região onde vive em Santa Catarina, Schroeder reconhece que o solo que ocupa não possui um mercado literário funcionando de maneira adequada. Mas isso não o impediu de cavar seu próprio espaço na literatura nacional com livros criativos e impactantes, como As Certezas e as Palavras e As Fantasias Eletivas.
Portanto, mesmo que Aranhas não seja uma surpresa para quem acompanha a literatura do autor – na mesma medida cerebral e divertida, que sabe usar com parcimônia elementos da violência urbana do Brasil e ao mesmo tempo rechear o texto de uma ética sensual entre os personagens -, o livro chega como um de seus melhores esforços.
A necessidade de aprender a lidar com aranhas surgiu como instinto de proteção paterno: frequentador de uma comunidade de 5 mil habitantes em Garopaba, litoral de Santa Catarina, explica que todo dia topava com uma quantidade razoável dos bichos. Para evitar acidentes com os filhos pequenos, andava nas pontas dos pés na casa procurando por sinais, e, leitor voraz, começou a pesquisar o comportamento das aranhas mais comuns na região, e o interesse se expandiu a ponto de ele consumir representações dos bichos na literatura e nas outras artes.
“Não seria o escritor ‘uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções construtivas de sua teia’?”, diz Schroeder, por e-mail, citando Roland Barthes. “Os escritores fazem teias diárias, como as aranhas, mas as nossas são narrativas, e muitas delas não vão para o papel, são derrubadas pelo vento, ou pela realidade.”
Mas as dele foram, sim, para o papel, e de um universo de cem contos produzidos sobre o assunto, sobraram os 32 que formam o livro Aranhas, uma reunião de contos unidos por uma teia sutil, numa arquitetura tão particular quanto aquela produzida por certas espécies.
No conto Saltadora, a personagem incorpora, inconscientemente, a estratégia da espécie da aranha de se alimentar de sangue para obter efeito afrodisíaco. Em Cuspideira, a personagem, professora, faz de tudo para trazer ao chão seu “alvo”, um estudante, tal qual a aranha de mesmo nome. Em Lince-americana, um tipo de emboscada é empregado no conto, seguindo o instinto da espécie. Outros textos trazem referências ainda mais subliminares.
“Acredito que um escritor deve ser fiel às suas obsessões”, comenta o autor. “A obsessão de Borges com a mitologia, por exemplo, é claramente refletida em seus contos. Assim como o sentido de deslocamento da família tradicional americana, nos contos de Lucia Berlin. E, como já escreveu o escritor catalão Enrique Vila-Matas: ‘Não há melhor forma de se livrar de uma obsessão do que escrever sobre ela’. Então entrei de cabeça no universo das aranhas e hoje tenho uma relação pacífica com elas.”
Outra marca da literatura de Schroeder é a diversidade de seus personagens, de gênero, preferências políticas, orientação sexual, entre outros aspectos, evitando estereótipos e lugares-comuns. “Minha vida sempre foi uma gangorra (nos últimos dez anos que sosseguei) e, embora tenha passado minha vida em cima dos livros, já fui DJ, segurança de festa, vendedor de carros sem saber dirigir, recepcionista de hotel, promoter de festas raves, vendedor de ternos, instalador de outdoors, assim como proprietário de jornal e de agência de propaganda”, conta. “Já vi muitas realidades e sei das dificuldades de muita gente, é um mundo cruel, triturador, com preconceitos estruturais.”
A construção estética, porém, não passa por uma busca de justiça ou representação, segundo ele. “Escrevo porque sou neurótico, e a escritura, essa mínima espécie de esquizofrenia (na qual você dá voz a outras vozes), é uma forma de colocar ordem no caos que são minhas referências, nos personagens que surgem, nas ideias que não cabem na rotina comum.”
Conhecido agitador cultural, curador de eventos com ressonância nacional e com bom trânsito no fechado meio literário brasileiro, Schroeder conta que viu nos últimos anos o desmantelamento de um sistema de apoio à área da cultura. “Editais, linhas de apoio, bolsas e residências minguaram… O incentivo estatal nacional foi abandonado, e o exemplo mais claro disso está no cinema: centenas de filmes parados, por incompetência e birra de um governo turrão e revanchista. Os EUA fazem um investimento público pesado e descentralizado.”
E o que a literatura pode fazer em tempos de pandemia? “Não foi a primeira vez e nem será a última. Posso morrer, e você, que está lendo, também pode morrer, é uma roleta darwinista. Quem sabe, depois desse medo, dessa catástrofe epidemiológica, a literatura e a ciência voltem a ter a importância que merecem, e soterrem esse mar de superficialidades, pós-verdade e fake news. Não custa sonhar.”
Article source: Guilherme Sobota