
Cinema celebra 125 anos de sua primeira sessão pública
17 de dezembro de 2020Quem conta nossas histórias?
Chamada para uma reflexão crítica sobre o futuro do audiovisual brasileiro diante do avanço das plataformas de streaming globais.
Tópicos abordados:
- Panorama atual: o boom do streaming no Brasil
- O impacto no audiovisual brasileiro
- Cotas de conteúdo nacional: ausência e consequências
- Modelos internacionais: o que o Brasil pode aprender
- A tributação e os fundos de fomento: o caso do FSA
- O papel do Congresso e da ANCINE
- Prós e contras da regulamentação
- Diversidade cultural e soberania audiovisual
- Caminhos possíveis para uma regulamentação eficaz
- Conclusão: entre o livre mercado e a responsabilidade cultural
Panorama atual: o boom do streaming no Brasil
Nos últimos cinco anos, o Brasil presenciou uma verdadeira revolução no modo de consumir conteúdo audiovisual. Netflix, Amazon Prime Video, Disney+, Max, Apple TV+, Globoplay e tantas outras transformaram o sofá de casa em sala de cinema sob demanda. Segundo a Agência Nacional do Cinema (ANCINE), mais de 70% dos lares com acesso à internet no país já assinam pelo menos uma plataforma de streaming. Em 2025, o número de assinantes ultrapassa 45 milhões.
Mas com essa abundância de oferta, surge uma pergunta essencial: quem está produzindo o que consumimos? E mais importante: como garantir que a cultura brasileira também esteja ali?
O impacto no audiovisual brasileiro
O crescimento do streaming foi benéfico sob muitos aspectos: abriu novos mercados, diversificou formatos narrativos e aproximou produções internacionais do público. No entanto, o efeito colateral é visível: as produções nacionais continuam sub-representadas, especialmente nas plataformas estrangeiras.
Sem uma política clara de fomento, as empresas multinacionais priorizam seus próprios catálogos. Séries brasileiras de sucesso, como Cidade Invisível ou Bom Dia, Verônica, são exceções, não regra. Isso significa que roteiristas, técnicos, produtores e atores nacionais têm menos espaço, menos visibilidade e menos financiamento.
Cotas de conteúdo nacional: ausência e consequências
Ao contrário da televisão aberta, que é obrigada por lei a exibir um percentual de conteúdo brasileiro, as plataformas de streaming não têm nenhuma obrigação legal de fazê-lo. Isso gera um descompasso: embora operem no Brasil e lucrem com o público brasileiro, essas empresas não estão comprometidas com o desenvolvimento da nossa indústria cultural.
Esse vácuo legal compromete a identidade audiovisual do país. Sem cotas, o algoritmo dita o que será visto, e o algoritmo — convenhamos — raramente privilegia conteúdos locais se não forem fortemente promovidos.
Modelos internacionais: o que o Brasil pode aprender
O Brasil não está sozinho nesse debate. Diversos países já regulamentaram (ou estão em processo de regulamentar) as plataformas de streaming:
- França: exige que as plataformas invistam pelo menos 20% da receita gerada no país em obras audiovisuais francesas ou europeias.
- Canadá: com o Online Streaming Act, tornou obrigatória a contribuição das plataformas para fundos nacionais de cultura e produção local.
- Argentina: impõe um imposto sobre as assinaturas de streaming e destina parte desses recursos ao desenvolvimento do setor audiovisual.
Esses modelos mostram que regulamentar não significa censurar, mas sim equilibrar o jogo e garantir que a cultura local tenha espaço em um mercado globalizado.
A tributação e os fundos de fomento: o caso do FSA
O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) é o principal mecanismo de fomento à produção audiovisual no Brasil. Financia filmes, séries, curtas, animações e infraestrutura técnica. No entanto, desde 2019, o fundo vem sofrendo com contingenciamentos, burocracias e queda na arrecadação.
A entrada dos streamings poderia representar uma nova fonte de financiamento, por meio de contribuições proporcionais ao faturamento nacional. Tal medida seria semelhante à Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), que já incide sobre outras janelas de exibição.
É justo que empresas que lucram bilhões no país também invistam no ecossistema cultural local. Afinal, não se trata de caridade, mas de responsabilidade econômica e simbólica.
O papel do Congresso e da ANCINE
O debate sobre a regulamentação dos streamings está, neste momento, em tramitação no Congresso Nacional, com projetos de lei como o PL 8889/2017 e suas atualizações. Em 2023, o senador Humberto Costa apresentou nova versão que exige:
- Contribuições financeiras das plataformas;
- Cotas mínimas de conteúdo nacional;
- Transparência de dados de audiência e faturamento.
A ANCINE, por sua vez, tem pressionado para recuperar seu protagonismo na regulação do setor. Mas enfrenta desafios políticos e operacionais, além de forte pressão de lobbies contrários à regulação.
Prós e contras da regulamentação
A favor:
- Fomento à produção local: mais empregos e oportunidades para criadores brasileiros;
- Proteção da diversidade cultural: impede a homogeneização de narrativas;
- Justiça tributária: equipara as plataformas aos demais setores do audiovisual;
- Maior transparência e dados de consumo: fundamentais para políticas públicas eficazes.
Contra:
- Risco de burocratização excessiva: pode afastar investimentos internacionais;
- Aumento nos custos operacionais: potencialmente repassados ao consumidor;
- Temor de interferência estatal no conteúdo: usado como argumento político, embora não haja previsão de censura nos projetos.
Diversidade cultural e soberania audiovisual
Mais do que uma questão econômica, regulamentar os streamings é uma questão de soberania cultural. A produção audiovisual é espelho da sociedade. Filmes, séries e documentários moldam imaginários, valores e identidades.
Se só consumirmos conteúdo estrangeiro, corremos o risco de nos enxergar apenas pelo olhar do outro. Garantir espaço para nossas vozes, sotaques e histórias é preservar a democracia cultural.
Caminhos possíveis para uma regulamentação eficaz
- Definir cotas progressivas de exibição de conteúdo nacional, considerando o tamanho da plataforma e a fase de implantação da lei.
- Estabelecer uma contribuição proporcional ao faturamento das plataformas para o FSA e outros mecanismos de fomento.
- Garantir a transparência na divulgação de dados de audiência, investimento e conteúdo exibido.
- Simplificar a burocracia para acesso a fundos públicos, especialmente para pequenos produtores e coletivos periféricos.
- Criar incentivos para coproduções entre plataformas e produtoras locais.
Uma regulamentação justa não deve sufocar a inovação, mas incluir mais vozes no processo criativo. O Brasil tem talento, diversidade e um público ávido por histórias bem contadas — falta apenas garantir as condições para que essas histórias aconteçam.
Conclusão: entre o livre mercado e a responsabilidade cultural
O debate sobre a regulamentação dos streamings no Brasil é, no fundo, uma disputa entre dois modelos de sociedade. De um lado, o mercado livre e desregulado que responde apenas ao algoritmo e ao lucro. Do outro, uma sociedade que entende que cultura é investimento, não gasto. Que sabe que soberania cultural não se compra em dólar, mas se constrói com políticas públicas, fomento e pluralidade.
Não se trata de escolher entre um ou outro, mas de encontrar o equilíbrio. E esse equilíbrio só será possível com regulamentação séria, democrática e baseada no interesse público.
Em 2025, temos todas as ferramentas — dados, exemplos internacionais, tecnologia, e um Congresso mobilizado. O que falta é vontade política. E, principalmente, mobilização da sociedade civil para cobrar a valorização da nossa cultura.