ANTÔNIO CUNHA, Diretor de Teatro e Ópera, Ator e Dramaturgo
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SÉRIE "OUTROS AUTORES" POR ANTÔNIO CUNHA
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SÉRIE "OUTROS AUTORES" POR ANTÔNIO CUNHA (Continuação)
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SÉRIE "DIÁRIO POÉTICO" POR ANTÔNIO CUNHA
Antônio Cunha
Diretor, dramaturgo, roteirista e ator, natural de Florianópolis, é de sua autoria, dentre outras, a peça “Dona Maria, a Louca”, que já recebeu montagens no Brasil e em Portugal, naquele país pela atriz portuguesa Maria do Céu Guerra. Em 2004, lançou o livro “Três Dramas Possíveis”, contendo três de seus principais textos teatrais. Como ator, tem participado de diversos trabalhos no teatro e no cinema, dentre os quais destaca-se o filme ENSAIO, de Tânia Lamarca, lançado em 2013. Assinou a direção de várias peças de teatro, suas e de outros autores, como “Uma Visita”, do dramaturgo alemão Martin Walser, pelo Grupo Armação, de Florianópolis, com a qual excursionou pelo território dos Açores, em Portugal, a convite do governo local. Iniciou a sua incursão pela ópera realizando a concepção e direção cênica de “O Diretor de Teatro” (Der Schauspieldirektor) de Mozart (2004) pela Companhia da Ilha (Florianópolis), continuando com Cavalleria Rusticana, de Mascagni (2004); A Flauta Mágica, de Mozart (2005); Rigoletto, de Verdi (2006); La Traviata, de Verdi (2007 e 2008); O Elixir do Amor, de Donizetti (2008) e O Barbeiro de Sevilha de Rossini (2009), todas pela Pró-Música de Florianópolis. Em 2010, dirigiu com a mesma equipe a remontagem da ópera La Traviata em Florianópolis, já pela Cia. Ópera de Santa Catarina, e, em 2012, a remontagem de O Barbeiro de Sevilha apresentada na cidade de Chapecó. Em 2013, dirige a montagem da ópera Carmen, de Bizet. É membro da Academia Catarinense de Letras e Artes - ACLA.
LEITURA: DIÁRIO POÉTICO
SUÍTE PARA VIOLONCELO
SUÍTE PARA VIOLONCELO
a folha
morta
amarelotriste
e torta
cai
espiralando o ar
e deixa
o seu traçado
outonamarelado
no olhar
da moça
que suspira
um ai
espiralado
outonamargurado
a escorrer-lhe
à face
como brilhante
e silenciosa
cicatriz
e vão pousar
a folha morta
e o ai profundo
enfim
no colo entardecido
do jardim
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha de Desterro e dos Desterrados, 15º de confinamento)
PROFANA
Faz da terra cama, ama e nela se desfaz em sumo.
Desabrocha em ramas novamente. Aflora!
A flora do amor é densa e vigorosa.
Penetra na floresta, adentra e nela cansa.
Fecha os olhos e um raio de sol te mostra em seta
a direção da tortuosa, instigante e perfumosa rosa.
Tem paciência e toque de do-in (dez dígitos na
pele e o pelo brota). Ora pelo que deleita
e implora às horas a eternidade.
A trilha aberta a golpes leva a uma fonte (sede),
a um rio (sentido), a um deus (castigo) ou à perdição.
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 13º dia de confinamento)
O SONO DOS ANJOS
Psssss!
Deixem-me ouvir o sono dos anjos!
Um vira
Um mexe
Um lembra
Um esquece
Um vai
Um vem
Um cai do além
Um só
Um dó
Um diz: amém!
Um terra tem
Um não tem mar
Um sonha até que Deus não há!
Um tem demais
Um vive aquém
Um passa mal
Um passa bem rente de mim sonanvolando em vaivém
Psssss!
Deixem-me dormir o sono dos anjos
Que, se não creio, invento
E só assim voo também
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 16º dia de confinamento)
INIMIGO OCULTO
Por que te sinto entre meus velhos medos,
Tão pequenino, tão ínfimo e tão presente?
Por que sibila em cada segundo de silêncio
A tua ensurdecedora voz, terrível e ausente?
Por que me lanças teu letífero sopro,
E me ameaças rindo com ilusões de vento?
Por que me prendes nestas paredes cegas,
Que já foram antes meu refúgio e alento?
Por que me tiras destas mãos o aperto,
Que tanto sal fecundo obteve em seus suores?
Por que me roubas dos meus braços os abraços,
Que tanto envolveram em si perdões e amores?
Não, não me venhas dizer, sapiente e cínico
Que só assim me torno eu mais forte e plácido,
Que sairei daqui medindo tantos versos de candura,
Que melhor suportarei enfim o doce e o ácido.
Pois prefiro ainda e sempre as dores velhas,
Prefiro lamber despreocupado o suor amigo,
Prefiro o entre e sai, o roçar de ombros,
Prefiro abraçar a morte que me chegue sem aviso!
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 18º dia de confinamento)
SIGNO
que lugar aquele ainda em mim
onde o caminho tem pernas curtas
e um desvio?
o menino sob
o céu de cobre
o fruto podre
o homem pobre
o mar revolto
e o precipício
que lugar aquele ainda aqui
onde o caminho é pouco
o desvio é muito
e sigo?
do lugar onde eu nasci
ainda ouço
o sino
o signo
e sigo…
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados,17º dia de confinamento)
BLUES
lua derramada
poças são estrelas
na calçada passo
um compasso
um breve olhar neon
som de voz saxotônica
velhos pensamentos nus
branca a fumaça negra a noite
todo sentimento blues
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 19º dia de confinamento)
VERDADE
palavra de medida
exata
fio de lâmina
que perpassa
ao rés-do-chão
cortando tornozelos (paus de rasos fundamentos,
sem raízes)
palavra que a frio
espreita
na curva da escada
o passo em falso
o solilóquio
a contrição
o disse-que-não-disse
a lide
é ver que arde
é verde e arde
esta sujeita
o quão esta palavra
é o cão!
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 20º dia de confinamento)
REALISMO E PONTO
um ponto inerte
no azul do longe
desvia a atenção
do olhar na paisagem
fria da fotografia.
serei eu lá perdido
na vastidão do pensamento?
isso não!
foi mesmo
uma mosca realista
que fez precisão.
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 21º de confinamento)
O EU COXO ou O HOMEM-LINGUADO
Tenho a face torta
Por desdenhar da vida
Tenho as pernas tortas
Por desandar na vida
Tenho a visão torta
Por desvendar a vida
Tenho a alma torta
Para que caiba em mim
Deus escreveu-me torto
Por linhas incertas
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 22º dia de confinamento)
GRAFITE
Pouso o olhar
A alguns poucos pensamentos de distância
Da parede branca
Branquíssima de tinta nova
A cheirar a látex
Imaculada
Oh! Que desejo súbito de maculá-la!
Um ponto
Um risco
E pronto!
Profaná-la!
Se fosse criança, crayon
Se fosse jovem, spray
Se fosse mulher, batom
Qual o quê!
Aperto as pálpebras com força e abro-as
E a parede branca se enche toda
De inquietas manchas
Dos olhos cansados
Do homem que sou
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 23º dia de confinamento)
A MINHA MAIS VALIA
Tem-me sobrado tempo, muito tempo ultimamente.
Uma semana leva-me um mês,
Um mês então, nem se fale!
Ando acumulando horas e não tenho onde depositá-las!
São elas a diferença entre a soma dos meus medos
E o valor final do que chamo desabusadamente poesia,
Mais o esforço que faço para torná-la um produto que valha.
O que me sobra das sobras chamo, cá pra mim, mais valia.
E já que me são tantas e tantas estas horas sobrantes,
Tiro algumas da carteira para observar o dia
Ou o que é possível observar através destas janelas.
E lá se vão almas corridas, algumas indiferentes,
Outras desconfiadas com os rostos plastificados evitando o ar que respiram.
Enquanto em Nova Iorque, o paraíso na terra, alguém diria,
Enterram-se em valas comuns tantos corpos quantos num filme,
Em Brasília um vírus patético passeia na padaria.
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 24º dia de confinamento)
PRESENTE
Anteontem Luizinho Doidinho passou por aqui
com o sol dentro de um saco.
Disse que levava ouro para ofertar ao Menino Jesus.
Ontem Luizinho Doidinho passou por aqui
com a lua dentro de um saco.
Disse que levava prata para ofertar ao Menino Jesus.
Hoje Luizinho Doidinho passou por aqui
dentro de um saco.
Dizem que foi ter para sempre com o Menino Jesus.
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 25º dia de confinamento)
I – RECADOS
A noite inteira
o vento bateu
na minha porta
querendo entrar.
Eu não abri.
Passei a manhã
varrendo os seus
recados no quintal.
II – SAUDADE
a
saudade
quando
toca é assim:
parece que há um
sino longe a bater em
mim
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 26º dia de confinamento)
QUINNIPAK
(Inspirado na peça de teatro “Quinnipak – Mundos de Vidro” escrita e dirigida por Sulanger Bavaresco – Grupo de Teatro O Dromedário Loquaz).
Em Quinnipak
O tempo possui uma grossa textura,
Encobre os telhados,
Adere às paredes,
Escorre em vidraças,
Não sai com água.
Em Quinnipak
As cores se tingem inusitadas,
Espreitam nas sombras,
Disfarçam vontades,
Encobrem olhares,
Resistem à luz.
Em Quinnipak
Os segredos se escondem nas ruas,
A passos contidos,
Suspiros profundos,
Pausas infindas,
Imensos cuidados.
Em Quinnipak
Os desejos se levam em carroças,
As esperanças se trazem em navios,
As alegrias se perdem em trilhos
Cortados,
Sem brilho,
Estéreis,
Dormentes.
Em Quinnipak
Os sonhos se guardam em vidros
Para sempre.
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 27º dia de confinamento)
MOTO DESCONTÍNUO
O tempo passa no seu vagar
Enquanto a velha olha pensativa da janela.
Se pensa em alguém que foi,
O tempo se move em marcha à ré.
Se pensa em alguém que virá,
O tempo se move na primeira, devagar.
Mas, se passa alguém diante dela,
Logo é passado no tempo da velha,
Que olha pensativa da sua janela.
O que pensa de fato a velha na janela?
Que o tempo sofre de lapsos e artrite como ela?
O que penso eu diante da velha?
Que controla com os seus olhos de cor amarela
O acelerador do tempo, passado e futuro.
O presente é ela!
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 28º dia de confinamento)
TAL QUAL UM MACHO
(Adélia Prado)
Comi em frente da televisão
sem usar faca
e repeti o prato
como os caminhoneiros que falam de boca cheia
e vi um programa até o fim.
Até altas da madrugada
fiquei vendo a moças rebolantes
locutores boçais dizerem
segura meu microfone, gracinha.
Depois fui dormir e sonhei,
voava perseguida por soldados
um voo medroso
temendo me embaraçar na rede elétrica.
Acordei com decepção e ânsias,
macho verdadeiro
sonharia com rebolâncias.
QUESTIÚNCULA PARA ADÉLIA PRADO
Quis escrever para Adélia
Um poema-resposta,
Ao modo das modas de antes,
Das cantigas caipiras,
Das trovas,
Repentes,
Mais ou menos assim:
Tal qual um macho
Dormiu Adélia,
Que sonhou perseguições,
Que acordou decepcionada…
Que nada, Adélia!
Que nada!
Um macho verdadeiro
Também sonha voos medrosos
Que ameaçam as virtudes
Das suas protuberâncias.
Por exemplo: o medo de sentir medo
Diante das rebolâncias.
Mas, deixa pra lá, Adélia,
Que poema não requer resposta.
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 29º dia de confinamento)
CONSUMMATUM EST
(Conto)
Finc! E a faca penetrou-lhe, fria e pungente, nos gorgomilos. O sangue escorreu grosso e um formigamento de veias tomou-lhe a pele seguido de um inusitado prazer, de uma fluidez morna, de um passamento… Sentiu-se imobilizado, embora o corpo se contorcesse em espasmos sucessivos. Depois, um vazio desmesuradamente intenso, um silêncio arrebatador, luz, muita luz, e uma paz de morte. Se pudesse concatenar qualquer ideia, qualquer pensamento, gostaria de pensar em como lhe era boa a vida. A medíocre, ridícula, inexpressiva e tranquila vidinha que levava. Quase podia ouvir os sons do dia quente, as vozes ora incompreensíveis ora deleitosas, os achegos cautelosos, as firulas onomatopaicas. Quase podia sentir os cheiros que costumavam rodear-lhe em profusão, os odores ácidos das comidas, os aromas frescos dos matinhos, o fortum de bosta a lhe assegurar certa identidade. Foi tomado de súbito por uma compreensão inexplicável das coisas e (pasmo!) do Homem. Este conhecera, sem se aperceber, através dos seus expurgos mais íntimos, das suas obras diárias, das suas decomposições. Analisara-o pela essência! Compreendera as suas tragédias cotidianas, as suas obsessões, as suas mais intempestivas necessidades. Tivera-o por ângulos inimagináveis, pelo avesso dos seus lados inversos, contemplando-o do fundo de sua garganta. Concluiu, enfim, que o Homem é um meio termo entre aquilo que come e aquilo que defeca. Por fim, enlevado em espírito (que seguramente possuía), viu o seu próprio corpo lancinantemente esquartejado; as partes separadas e expostas às ambições deglutantes; a matéria finda em escuro e efervescente caldo. Num ato de grandeza extrema, perdoou os seus algozes (porque não sabem o que fazem) e, esforçando-se para um último e defectível guincho, partiu, quem sabe para a eternidade, com um fio de lágrima etérea a escorrer-lhe pelo espectral focinho. Fora um porco feliz.
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 30º dia de confinamento)
VELOZ IDADE
Tenho pouco mais de tantos anos
E os planos que eu faço já nascem sofrendo de urgência.
Nascer morrendo é, no mínimo, uma incongruência.
Não há nada mais instantâneo que viver.
A luz é rápida, mas o tempo…, este não tem interruptor!
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 31º dia de confinamento)
SISMO
sinto-te por entre e dentes
sísmicos tremores
salientes vias
síncope da razão
senso perdido de minha mão
sinuoso corpo
sobressaltado um olho
só me vigia
submerso fico em tua boca e
suspiro!
sorve-me em silêncio
sopra-me qualquer dia
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 32º dia de confinamento)
AS RUAS DA MINHA CIDADE
As ruas da minha cidade
Perseguem estranho destino
Rastejam sobre si mesmas
Esfolando os próprios leitos
Vão quando estão voltando
Vem quando estão partindo
Tais cobras pelos rabos se engolindo
As ruas da minha cidade
Escorrem por curvas e traços
Por onde desaguam apressadas
Tantas idas sem regresso
Tantos regressos sem abraço
Como um carrossel tristonho
Que se olha com distantes olhos lassos
As ruas da minha cidade
Já não são as mesmas de antes
Sofrem tão desenxabidas
Que mais parecem uns riscos
Traçados num quadro inerte
E à noite de instante em instante
Umas carreirinhas de luz que lhes correm resilientes
As ruas da minha cidade
Andam tão ressabiadas!
Em cada esquina um vento estranho
E um medo que não tinha antes
Para aliviar as ausências
E atrair gentes já de si tão cansadas
Fazem brotar matreiramente musgo e flores nas calçadas
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 33º dia de confinamento)
PERDÃO
Perdoem-me! Perdoem-me!
Eu não deveria estar assim tão poesia.
Eu deveria vociferar com mais frequência
Todas as nossas, talvez imerecidas, desventuras .
Sim, eu deveria gritar com mais vigor aos quatro ventos
O quanto nos faz mal aquele desolhar sobre nós todos,
O quanto nos sufoca aquela presença malpropícia,
O quanto nos diminui aquela pequeneza desmedida.
Eu gostaria de dizer-lhe cara a cara, se pudesse,
Que o ar que nos mantém não o suporta,
Que o sol que nos induz não o tolera,
E que a noite que nos embala não o abraça.
Eu poderia gritar em seus ouvidos moucos
Que mesmo não sabendo ao certo o ponto exato,
Existe um limite imposto para a estupidez.
Que a tolerância, mesmo aquela que nutrimos
Por razões que estranhamente desconheço,
E que lhe garante um inexplicável direito de existência,
Pode a qualquer momento terminar-nos sem aviso.
Perdoem-me! Perdoem-me!
Eu não deveria estar a dizer tanta aresia,
Mas a presença dele em nossas vidas
Encobre-me quase sempre a luz do dia
Tornando-o um presente sem saída.
Perdoem-me! Mas se escrevo assim, com algumas cores,
É por que sei que ele não suporta poesia.
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 34º dia de confinamento)
ALLEGRO
correm duas moças
duas moças contentes
duas brevíssimas libélulas
duas gazelas pulantes
flutuando na vertigem
sucumbindo de cansaço
se é que se cansam
as gazelas
as libélulas
e as moças contentes
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 35º dia de confinamento)
VÊNUS CAÍDA
Bem no fim
Do fim do dia
Fartos falsos seios
Empinados feito dedos
Apontam na direção
Do Olimpo o sujo
Panteão dos livres
Dos médiuns
E dos medos
Descem montados
Em sua vã filosofia
Pelos becos
Pelos cercos
Pelos cruzamentos infectos da lua
E vão amanhecer
Fartos frouxos cheios
Da vida beijando
Imersos em poças
De suspiros profundos
A face escura da rua
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 36º dia de confinamento)
COISAS
ando pensando em coisas de há muito
em coisas que não são mais
em coisas que se misturam todas e indefinidamente em mim
qualquer coisa assim como a imensidão do meu quintal de infância
o poço de água cristalina ou um cágado encalhado no valão
ando pensando no fogão à lenha, na chapa de assar formigas
na lamparina à querosene, no porão
ando pensando em jogo de taco, em bituca de cigarro
em matinê no Cine São Luís
ando pensando em coisas de tão longe…
ando rarefeito em coisas por aí
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 37º dia de confinamento)
RECEITADOR
Procure-se no peito uma dor escondida (mas nem tanto),
Uma dor que alimente de acre sumo o Homem
E o faça tornar-se profundo não querendo.
Uma dor que o deixe entre o querer sofrer
E o aliviar-se de si mesmo.
Uma dor que lhe deixe ávidas de carinho as mãos
E o peito exposto em talhos.
Eis que a poesia, flor que ao mesmo tempo lanha e afaga,
Necessita tantas vezes brotar de um coração posto em frangalhos.
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 38º dia de confinamento)
EM HOMENAGEM AO POVO PORTUGUÊS NESTE 25 DE ABRIL
TROVA DO VENTO QUE PASSA
(Manuel Alegre)
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio – é tudo o que tem
quem vive na servidão.
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
Vi meu poema na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Vi navios a partir
(Portugal à flor das águas)
vi minha trova florir
(verdes folhas verdes mágoas).
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.
O vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
A SALA AMARELA
Tem um quê de ninho a minha sala amarela.
É onde eu pouso no fim da história.
É de onde as distâncias ficam satisfatórias.
Dá para ver lá fora – seguro como se o lá fora aqui nunca chegasse
Por uma fresta da janela da minha sala amarela.
Vejo a claridade delatora do dia expondo as fraturas
E a confusão de vida que passa sem notar que é vista,
Conduzida por homens de fisionomia turva, inteligência parca e estatura reduzida.
O sol sabe que eu estou na minha sala amarela,
Pois cola o seu olho de fogo na vidraça – mas o sol não conta,
Ele está acima e tudo pode, inclusive entrar insolente na minha sala e se apossar dela.
Como quem gira o tambor e engatilha a sorte,
Abro meia janela da sala e nela, despido do dia,
Eu ando nu e posso até amar a minha amada,
Beber vinho e morrer de mal súbito
Tendo apenas o sol por testemunha.
E assim, enquanto o silêncio dos que não mais passam se avoluma
E deita a rondar a minha janela um cheiro asséptico de mais nada,
Eu me resguardo e espero.
O relógio na parede e o vírus à espreita na soleira não sabem porque não sabem
A hora em que terei que me dar ao mundo novamente
E logo desejar fugir do mundo a tempo e sempre,
No meu abrigo desenhado a giz e luz e sombra e tal,
Nesta ilusão dourada de Pindaya, nesta pequena e quente miragem de Izamal.
– Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados,
Florianópolis, oitavo dia de confinamento.
ESTREIA
(Para o querido amigo Sérgio Bellozupko)
Há um rumor imprevisto a rodopiar no céu de agorinha
É assim como um zumbido, um diz-que-diz, uma espera
Uma espécie de aviso, um prenúncio de partida
Há um esganiçar-se de nuvens a se desenhar agora à tarde
Parece que estão a limpar com sopros de boas vindas
Um caminho de luz intensa sobre a cena refletida
Há um ruído sobrepondo-se ao mastigar intenso da demora
Lembra muito o ranger tão esperado das cadeiras ocupadas
Por uma imensa, inquieta e incontrolavelmente ávida plateia
E por fim há um pulsar que não se costuma ouvir assim em público
Mas que no peito atormenta, ao mesmo tempo que conforta
É o teu grande coração, amigo amado, a disparar aí na grande estreia
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 40º dia de confinamento)
NOTURNO
Quando tudo respira vagamente,
sonolentamente, profundamente
entregue a um vazio imenso como o esquecimento;
quando a cerração inunda o ar
de morna lentidão e uma viva alma
passa assobiando um lamento na calçada,
eu fecho o olho sul da minha casa
e me recolho – o corpo encaracolado sob o cobertor.
A madrugada instalada no meu quarto
ouve, circunspecta, um violoncelo.
(Eu ronco um prelúdio).
Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 9º dia de confinamento.
CASO
Tem-me dado trabalho
Esta minha poesia.
É dar-lhe corda e a dita, atrevida,
Se esvazia de mim e sai
Papel afora, cheia de si,
Querendo ser lida.
Às vezes cai no vazio,
Às vezes cai mesmo na vida,
E volta, num dia, aos trechos, sorumbática,
No outro, até mais bonita,
De um jeito que só ela,
Querendo ser reescrita.
Eu cedo, resignado,
A alma torta, interdita.
O que fazer? Me acostumei com a vida assim,
Extenuante, desconcertante, condescendente, aflita!
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 41º dia de confinamento)
AO MAR
sinto-me ao mar, que mar é este?
ao mar que ondula nos meus sonhos tristes
ao mar que adula estes meus pés dormentes
ao mar que esconde o ardil dos seus abismos
na calma insidiosa das correntes
levo-me ao mar, que o mar me chama
ao mar profundo e plaino de tão calmo
ao mar tão raso e undoso de revolto
ao mar que ouço em mim no peito em concha
ao mar tão cheio em dor, em graça pouco
dou-me ao mar, que o mar insiste
ao mar que leva no crespor das vagas
algas, andrajos de almas naufragadas
perdidas todas pelo mar a sempre
como eu que vejo ao fim sem fim só mar
tão mar somente
Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, décimo dia de confinamento.
DESERTO
Longe
Tanto quanto o tempo em vapores se esvaia
Sem que sombra alguma o sol ardente cubra
Tanto que na sede o suor do rosto eu beba
Tanto que sozinho me supra a ausência a cáfila
Onde em silhueta a caravana passa
Longe
Tanto quanto o vento em valsa me enlace
Sem que pele o corpo todo me envolva
Tanto que na miragem acene a mão um adeus à ninfa
Tanto quanto erre no apagar das trilhas
Onde apenas reina a areia soberana
Longe
Tanto quanto eu aqui ainda esteja
Por mais que fina, lisa e movediça a vida seja
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 11º dia de confinamento)
MISTÉRIO DOLOROSO ACOMETIDO
DE UM INSTANTE DE GOZO
morro alto
dolorosa estação
calvário inatingível
de pedras pontiagudas
raízes extirpadas
no caminho
arrastar a dor
morro acima
por meio de cordas
de aço inexorável
pululando em cada
passo os sulcos
futuras e irremediáveis
cicatrizes
um desequilíbrio e
dor
dor
dor
morro abaixo
dor de recobrar
os sentidos em pedaços
e recomeçar
morro alto
dolorosa estação
calvário inatingível..
…é imprescindível
viver dói muito, mas,
perdoai-nos pai
um furtivo gozo
que a vista cá de cima
é mesmo uma beleza!
(Antônio Cunha – Entornos da Ilha do Desterro e dos Desterrados, 12º dia de confinamento)